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DEU NO FANTÁSTICO - Presos tomam chá alucinógeno em projeto social polêmico em Rondônia



“Eu parto do princípio do cristianismo universalista em que Jesus aceitou os gentios e ele veio para os criminosos. Então, se eu sou cristão e digo que sou cristão, eu tenho que exercer essa tarefa. Apenado é para mim uma condição temporária. Ele é apenado hoje e amanhã pode ser livre”, afirma Edílson Fernandes da Silva, dirigente da religião.

Na área coberta, cerca de 150 pessoas. Entre elas médicos, autoridades do judiciário, policiais, boa parte da elite de Ji-Paraná. Todo mundo de branco como é regra no Daime. No meio disso, os presos. Todos vão tomar o chá alucinógeno, que no Brasil é legal, se usado em rituais religiosos.

Um momento chave da cerimônia é quando o dirigente da religião faz a distribuição do Daime para as pessoas. E entre os que estão na fila, está o pessoal que está preso. As orações são repetidas como mantras. Só a equipe do Fantástico não tomou a ayahuasca. Todos os outros estão em transe.

Algumas cadeiras ficam vazias porque as pessoas saem para vomitar, um efeito colateral comum do Daime. São horas e horas de orações, cânticos e mais orações.

 Uma folha misturada a um cipó, em uma noite de lua nova. É assim que se prepara um chá alucinógeno, descoberto pelos índios, e usado até hoje em rituais religiosos: o Daime.

Em Rondônia, no Norte do Brasil, uma instituição de ajuda a presidiários começou a oferecer o Daime a presos do regime fechado. E também massagens, banhos de lama, meditação. Esta experiência radical, e polêmica, é o tema da reportagem especial do Fantástico.

Eles são presos, mas não estão presos. Frequentam uma instituição de ajuda a condenados. Trabalham com ferramentas potencialmente perigosas. Passam o dia e alguns até dormem na instituição. Para esses, à noite, não existem guardas, só câmeras. A chave fica com eles mesmos. “A única forma de vigilância é através da nossa própria consciência “, afirma um detento.

Em Porto Velho, a capital de Rondônia, em um bairro onde existem nada menos que oito presídios. Nele fica também uma organização não-governamental chamada Acuda, uma ONG que há 15 anos oferece terapias alternativas para presos do regime fechado: assassinos, traficantes, estupradores, pedófilos. Um trabalho tão fora do comum que chamou a atenção até de um dos jornais mais importantes do mundo, o New York Times.

“Muitos perguntam assim: por que vocês não fizeram com idosos? Com idosos já tem muito. Por que não fizeram com criança? Porque já tem bastante gente fazendo com criança. E por que com detentos? Porque com detentos ninguém quer fazer”, afirma o diretor-geral da ONG Acuda, Rogério Araújo.

As práticas da Acuda juntam elementos do espiritismo, da filosofia hippie e da chamada cultura da Nova Era. “Nós acreditamos na recuperação de todo mundo”, conta diretor-geral da ONG Acuda.

Quem passa o dia no local são cerca de 100 presos, os 13 que moram na Acuda, mais os outros que vêm de três cadeias da região e voltam no final da tarde. Para começar, meditação, ao som da Sinfonia Heroica, de Beethoven. Depois, massagem ayurvédica, uma modalidade indiana feita com óleos. Um preso aplica no outro, e depois recebe.
E mais: a terapia do cone chinês, para purificar os ouvidos e as vias respiratórias.Também o Reiki, que os praticantes acreditam ser uma cura pelas mãos. E, no fim do dia. De todas as terapias alternativas que acontecem, a mais alternativa é o banho de lama. A ideia é que as coisas ruins saiam pelos poros.

Durante o dia, os agentes montam guarda do lado de fora da ONG, porque presos muito perigosos participam das atividades, como Marco Antônio Chaves. Em março do ano passado, ele foi condenado a 24 anos pelo estupro e morte da estudante de jornalismo Naiara Karine, em 2013. Foi um caso de enorme repercussão em Rondônia. “Não queria dar entrevista não. Não gosto de falar disso não”, diz Marco Antônio Chaves.

Ele frequenta a ONG há oito meses. Fez o pedido para direção da cadeia, que o recomendou aos coordenadores da Acuda. “Todo mundo tem direito a uma segunda chance”, diz Marco Antônio Chaves.

O Fantástico procurou Dona Linara, a mãe da vítima.
Fantástico: O que a senhora acha disso?
Linara da Costa Freitas, mãe de Naiara: Eu acho ridículo. Acho que isso não está certo. Até hoje ninguém veio nos dizer: vocês querem um apoio, vocês tão precisando de um psicólogo? Alguma coisa assim, nesse sentido. E ele, um ano de condenação já tem esses benefícios aí. Não acho certo isso.

Marco e os outros presos, que vão e voltam da cadeia, participam de todas as atividades, menos uma. Uma iniciativa mais recente, que incluiu entre as terapias um chá alucinógeno: o Daime. Todos os presos que moram na Acuda mais alguns do regime semiaberto passaram a tomar a bebida. Para quê? “Eles têm conseguido observar o mal que se fizeram, que fizeram em suas vítimas e que provocaram na sociedade”, explica o diretor-geral da ONG Acuda, Rogério Araújo.

As alucinações do Daime são causadas por uma substância de uma folha, a chacrona. O Fantástico acompanhou a preparação do chá no sítio no interior de Rondônia feita por um grupo independente da ONG. A planta é colhida com reverência e muito cuidado. As folhas são colocadas em um caldeirão. Mas elas, sozinhas, não funcionam. Como explica o cientista da USP.

Fantástico: Tem uma substancia que está na folha. Se você tomar diretamente.
Jaime Hallak: Ela não vai fazer efeito.

A nossa digestão destrói muito rapidamente o componente ativo da folha. Por isso, para mistura funcionar, é preciso mais um ingrediente. “Você precisa do cipó para poder absorver. Por isso que eles fazem esse chá”, explica o psiquiatra Jaime Hallak.

O cipó é conhecido por Mariri ou Jagube. Depois de retirado da floresta, é lavado, cortado em tiras e posto para ferver com água e as folhas da chacrona.

A preparação acontece quatro vezes por ano. Sempre na Lua nova, sempre durante a noite. “Isso existe há milhares de anos. Os índios que perceberam isso. Você não sabe exatamente como começou”, conta Jaime Hallak.

Na língua dos índios da Cordilheira dos Andes, o Daime é chamado de ayahuasca, o cipó dos espíritos. “Ela tem uma ação que dura cerca de 40 a 50 minutos. O quadro alucinatório. Depois vem uma sensação de bem estar, um sentimento de tranquilidade, de que as coisas fazem sentido, muito bom”, afirma Jaime Hallak.

O chá aumenta a atividade em regiões muito específicas do cérebro, os pontos vermelhos que você vê no vídeo. “São áreas relacionadas à depressão.  O sujeito que está com isso funcionando pouco, ele tem pouca iniciativa”, explica Jaime Hallak.

O grupo da USP faz estudos, ainda iniciais, sobre o uso da ayahuasca como antidepressivo. E uma nova pesquisa, junto com a Federal do Rio Grande do Norte, avalia efeitos também contra a ansiedade. “Todos aqueles que não melhoravam com o antidepressivo anteriormente, passaram a melhorar”, conta Jaime Hallak.

Muito longe dos laboratórios, mas também em busca de paz interior, os presidiários de Rondônia se preparam para viajar. O grupo vai até um sítio onde a ayahuasca, já preparada, espera por eles. Fica em Ji-Paraná, a 360 quilômetros de Porto Velho.

Em uma manhã de sábado, vão os 13 condenados que são do regime fechado, mas moram na ONG Acuda. Outros presos se unem ao grupo. Eles não moram dentro da instituição. Estão presos em regime semiaberto, mas também vão tomar o chá. Eles saem em vários carros. Eles vão sem nenhum tipo de escolta. Só os presos, a psicóloga e os diretores da ONG.

Para participar da viagem só com autorização do juiz corregedor dos presídios. Ele tem fama de linha dura, mas apoia a iniciativa. “Nós somos tão carentes de métodos de ressocialização, que a gente tem que correr esse risco”, afirma Renato Bonifácio de Melo Dias, juiz corregedor dos presídios.

Nos dois anos em que o juiz está no cargo, houve uma fuga no grupo que toma Daime, e o homem foi recapturado no dia seguinte. “Só que pessoas que estão sob grades, que estão dentro de muros, dentro de cadeias, fogem muito mais do que aquelas pessoas que estavam sem essa vigilância”, afirma o juiz.

Depois de quase cinco horas de viagem, o grupo de presos finalmente chega à chácara Divina Luz. Falta pouco para começar a cerimônia do Daime. Alzimar é um dos participantes.

Fantástico: Sua pena total de quanto tempo é, Alzimar?
Alzimar Dantas Coelho, presidiário: Minha pena total é 34 anos.
Fantástico: Quantas pessoas você matou?
Alzimar: Dois, um duplo homicídio.
Foi por uma dívida de R$ 50. As duas vítimas eram menores de idade. “São vidas, né? Duas vidas que eu tirei. Me sinto muito culpado por isso e pretendo não fazer mais isso”, conta Alzimar.

Alzimar e os outros condenados têm as portas abertas na chácara do Daime, segundo o dirigente da religião.
Os cânticos e as orações vão se sucedendo, o tempo vai passando, e o Daime faz cada vez mais efeito e nota-se que a maioria das pessoas está de olhos fechados. Elas dizem que dessa maneira, de olhos fechados, as alucinações ficam mais intensas.

Depois, uma segunda dose do chá. Mais um longo período de cânticos. Uma terceira dose. E, finalmente, a dança, quando a religião do Daime encontra a umbanda. A festa vara a madrugada.

Fantástico: Alzimar, falamos com você antes e agora está acabando, quase cinco horas depois. Como é que foi hoje para você?
Alzimar: Foi bom. Foi bom.

Fim da experiência. Já é manhã de domingo. Os presos se preparam para voltar, em um clima de leveza e tranquilidade. Mas para algumas famílias de vítimas, eles não deveriam ter esse direito.

Dona Lucimar e Dona Clélia são as mães dos jovens assassinados por um dos presos, o Alzimar. “Eu acho errado, porque ele era para estar no fechado, no fechado mesmo. Porque, olha, ele não matou dois cachorros, não. Duas pessoas de menor. Na maior crueldade do mundo”, afirma Lucimar Alvez de Carvalho, mãe de vítima.

“Ele tinha que pagar pelo que ele fez. Isso nunca que eu vou concordar. Não acho certo, não. Leva boa vida. Quer dizer, aqueles que morreu, foi, mas agora ele que está vivo fica aí na vida boa”, diz Clélia Maria dos Santos, mãe de uma das vítimas.

“A gente já sabe que muitos vão nos bater: vocês estão passando a mão na cabeça de bandido. Por que vocês não cuidam das vítimas? Não estamos aqui para fazer apologia ao crime. Não estamos aqui para defender criminosos. Querendo ou não essas pessoas vão voltar para sociedade. E aí a grande pergunta é: nós queremos que elas voltem como?”, questiona diretor-geral da ONG Acuda, Rogério Araújo.

O comboio sem escolta toma o rumo de volta a Porto Velho. No dia seguinte, logo cedo, meditação. Vai começar tudo de novo.

FONTE-G1/FANTASTICO