Monitoramento em vida livre de Guirigó, como foi nomeado o macho, contribui para comparação de comportamento de animais com melanismo e pelagem ‘normal’.
“Uma felicidade indescritível”. Foi assim que o biólogo e coordenador científico do Onçafari, Eduardo Fragoso, definiu o momento de encontro com Guirigó, um macho adulto de onça-preta com idade estimada de 12 anos e peso de 81 kg. O Onçafari atua desde 2011 com pesquisa, conservação e habituação de onças-pintadas, tendo já realizado mais de 70 capturas. Mas dessa vez, uma chamou a atenção. Guirigó foi capturado no dia 13 de junho na região da Pousada Trijunção, divisa entre Minas Gerais, Goiás e Bahia. No Terra da Gente, você já conferiu que a onça-preta e a onça-pintada são a mesma espécie e que a diferença está na mutação genética.
Para chegar até o momento da captura, Eduardo conta que existe todo um trabalho prévio. “Estamos na região em parceria com a Pousada Trijunção desde 2018, atuando com pesquisa de biodiversidade, com maior foco na conservação e habituação de lobos-guarás. Em 2022 expandimos nosso monitoramento para o Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Nós vamos identificando os indivíduos registrados, os horários e locais de maior atividade. Depois instalamos as armadilhas de captura, chamadas de ‘laços’, e monitoramos elas remotamente de hora em hora com auxílio de transmissores. Quando ela é acionada, nossa equipe se desloca até o local para a checagem visual. Se for onça, nosso veterinário injeta o dardo anestésico e, quando ela dorme, iniciamos todo o procedimento, que inclui a verificação constante dos sinais vitais, coleta de sangue, saliva, pelos e ectoparasitas (como carrapatos e bernes). Também tiramos todas as medidas, o peso do animal (biometria) e colocamos o colar GPS”, descreve.
Além de Guirigó, outra onça-pintada foi capturada para fins científicos. Trata-se de Riobaldo, um macho de 69,7 kg, com pelagem normal e mesma idade de Guirigó.
Os nomes fazem referência aos personagens do clássico da literatura “Grande Sertão: Veredas”, publicado em 1956 pelo mineiro João Guimarães Rosa. Os dois indivíduos receberam colares GPS e a expectativa é de que as baterias durem cerca de um ano e meio a dois anos, período em que já terão informações via satélite dos locais por onde os animais estão passando. Paralelamente ao monitoramento remoto, o biólogo explica que há uma equipe em campo quase que diariamente acompanhando esses deslocamentos.
“Quando checamos esses pontos, conseguimos identificar onde as onças passaram mais tempo, o que pode ser indicativo de predações ou locais de descanso. Isso nos ajuda a entender melhor a dieta dos animais, onde se protegem das altas temperaturas durante o dia e com quais outras onças interagem. O Riobaldo já é um velho conhecido nosso, temos registro dele desde 2019. Mas o Guirigó é um macho que começou a aparecer nas nossas câmeras em abril desse ano, portanto, parece ser novo na área”, diz.
CAPTURA SEGURA
Segundo Eduardo Fragoso, um dos objetivos com a captura dos dois indivíduos é entender se o padrão de atividade, movimentação, comportamento e dieta das onças-pintadas melânicas é igual ou não ao das onças-pintadas com pelagem normal. “Essa região do Cerrado tem uma paisagem mais aberta e o calor aqui é bem intenso, o que poderia desfavorecer um animal com pelagem preta, como o Guirigó”. Apesar disso, o biólogo acredita que essa “limitação” da pelagem escura não seja um fator determinante, tendo em vista que muitos animais melânicos têm sido flagrados pelas câmeras.
Embora o termo “capturar” e a colocação de rádio-colares com GPS possam assustar a quem está lendo, é importante enfatizar que os colares não machucam os animais e nem interferem na rotina deles. Após um período de tempo, esses colares se soltam automaticamente. “O procedimento é bastante seguro e realizado por uma equipe comprometida com o animal. A anestesia, por exemplo, foi aplicada pelo Joares May-Jr, um veterinário nosso com quase 20 anos de experiência em captura de onças-pintadas em vida livre”.
O biólogo reforça também que existe uma preocupação com a segurança da própria equipe. “Estávamos em quatro pessoas em tempo integral, mas contamos com a ajuda de outras quatro biólogas do Onçafari e da equipe da Pousada Trijunção, que foram importantes ao longo da campanha”, destaca.
CONTRIBUIÇÃO PARA A CIÊNCIA
Aumentar o conhecimento científico sobre onças-pintadas, avaliar de forma constante o estado de saúde dos animais e potencializar sua proteção são algumas das metas do Onçafari. O desafio é enorme pois, embora seja o terceiro maior felino do mundo, é uma espécie pouco estudada. No bioma cerrado, ainda menos conhecida.
Eduardo Fragoso lembra que as onças-pintadas do Cerrado estão sob forte ameaça e pressão com o avanço do agronegócio, com uma perda rápida de habitat somada à perseguição por caçadores. Segundo maior bioma do Brasil, o Cerrado e toda a sua biodiversidade vêm sofrendo com a perda de vegetação nativa. “Em 50 anos, mais da metade do Cerrado foi desmatada e os alertas de desmatamento ainda seguem batendo recordes. Então esse programa também visa estratégias que controlam algumas dessas ameaças para que a população de onças e das espécies que coexistem com elas consigam sobreviver e prosperar nesse ambiente em acelerada transformação”.
Atualmente líder dos trabalhos do Onçafari com grandes felinos no Cerrado, Eduardo se dedica à pesquisa e conservação de mamíferos desde 2014, com ênfase em predadores de topo, como onças-pintadas, pumas e lobos-guarás. Essa foi a primeira campanha de captura de um programa de longo prazo para a conservação das onças-pintadas na região da Trijunção e Sertão Veredas. “A vontade de capturar uma onça-preta era enorme. Era um sonho vê-la na natureza e eu estava muito confiante”, conta ao lembrar que havia “batido na trave” em 2021, quando passou perto de ver um macho melânico que foi filmado em uma das armadilhas fotográficas.
O conhecimento a ser adquirido durante o tempo que os colares ficarão nos dois animais será fundamental para orientar o trabalho e definir quais áreas podem ser usadas para a criação de corredores ecológicos. “Isso poderá garantir que as unidades de conservação do entorno tenham maior conectividade entre si, sejam efetivamente protegidas e que as espécies selvagens possam se deslocar e viver em grandes extensões de Cerrado nativo”, conclui.
Para mais detalhes sobre a atuação do Onçafari em diferentes frentes de conservação, acesse: https://oncafari.org/.
Por Fernanda Machado, Terra da Gente
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