Disponível há um século, o remédio isento de prescrição é indicado no Brasil para tratar febre e dor — mas uma polêmica nos anos 1970 fez com que ele se tornasse praticamente desconhecido em diversos países atualmente.
Pouco depois, outros países tomaram a mesma resolução, como foi o caso da Austrália, do Japão, do Reino Unido e de partes da União Europeia.
“E a proibição dela aconteceu justamente nos países que mais fazem pesquisas de eficácia e segurança sobre medicamentos”, destaca Marise.
Segundo ela, isso diminuiu o interesse em fazer testes e investigações sobre a dipirona — o que fez o fármaco se tornar praticamente desconhecido nesses lugares desde então.
A partir dos anos 1980, começaram a surgir novas evidências sobre a segurança da medicação — que jogaram mais controvérsia na discussão.
O Estudo Boston, por exemplo, foi realizado em oito países (Israel, Alemanha, Itália, Hungria, Espanha, Bulgária e Suécia) e envolveu dados de 22,2 milhões de pessoas.
Os resultados encontraram uma incidência de 1,1 caso de agranulocitose para cada 1 milhão de indivíduos que usaram a dipirona — o que é considerada uma frequência bem baixa.
Em Israel, uma investigação realizada com 390 mil indivíduos hospitalizados calculou um risco de 0,0007% de desenvolver essa alteração no sangue e de 0,0002% de morrer por causa desse evento adverso.
Já na Suécia, que voltou atrás e liberou a dipirona brevemente nos anos 1990, foram detectados 14 episódios de agranulocitose possivelmente relacionados ao tratamento, com 1 caso para cada 1.439 indivíduos que tomaram esse fármaco.
Essa frequência mais alta, aliás, fez com que o país nórdico proibisse a comercialização do fármaco novamente em 1999.
Mas o que justifica essa disparidade de resultados? Embora não exista uma explicação clara, Marini aponta três fatores que ajudam a entender o cenário.
💊 “Primeiro, há uma mutação genética que parece facilitar o aparecimento da agranulocitose em alguns indivíduos que usam dipirona. E sabe-se que essa mutação é mais comum em populações dos Estados Unidos e de partes da Europa”, diz ela.
💊 “Em segundo e terceiro lugares, dosagens mais altas e uso por tempo prolongado também influenciam nesse risco”, completa.
E no Brasil?
A dipirona foi alvo de uma grande pesquisa realizada na América Latina que ficou conhecida como Latin Study.
Entre janeiro de 2002 e dezembro de 2005, cientistas de Brasil, Argentina e México se debruçaram sobre dados de 548 milhões de pessoas.
Nesse universo, foram identificados 52 casos de agranulocitose — o que representa uma taxa de 0,38 caso por milhão de habitantes/ano.
O trabalho latino ainda mostrou que esses episódios de alteração sanguínea grave são relativamente mais comuns em mulheres, crianças e idosos.
Pouco antes disso, em 2001, a Anvisa realizou um evento chamado “Painel Internacional de Avaliação de Segurança da Dipirona”, em que foram convidados especialistas brasileiros e estrangeiros.
“O objetivo deste painel foi a promoção de amplo esclarecimento sobre os aspectos de segurança da dipirona”, contextualiza a agência, em nota enviada à BBC News Brasil.
“Conforme o relatório final, as conclusões do referido painel foram que há consenso de que a eficácia da dipirona como analgésico e antitérmico é inquestionável e que os riscos atribuídos à sua utilização em nossa população são baixos e similares, ou menores, que o de outros analgésicos/antitérmicos disponíveis no mercado”, complementa o texto.
A Anvisa reforça que, desde a realização do painel há 22 anos, “não foram identificados novos riscos ou emitidos novos alertas de segurança relacionados à dipirona” — e, portanto, não há qualquer discussão sobre uma eventual proibição de venda dela no Brasil.
Além do país, a dipirona também está disponível em Índia, Alemanha, Espanha, Rússia, Israel, Argentina e México, entre outros.
A BBC News Brasil também procurou as farmacêuticas responsáveis pelas versões comerciais mais populares da dipirona no país.
A Sanofi, que fabrica Novalgina e Dorflex, disse que “cumpre rigorosamente toda a legislação brasileira vigente, em especial a legislação sanitária e as regulamentações da Anvisa em vigor”.
“Reiteramos que a dipirona está no mercado mundial há mais de 100 anos e é utilizada por milhões de pacientes em todo o mundo”, diz o laboratório, que também classifica como “inquestionável” a eficácia da medicação.
A Hypera Pharma, que faz a Neosaldina, informou que "a dipirona é um princípio ativo liberado pela Anvisa para comercialização no Brasil" e todos os produtos da farmacêutica que contêm a molécula "contam com registro aprovado na agência, com comprovação de segurança e eficácia".
Já a Associação Brasileira da Indústria de Produtos para o Autocuidado em Saúde (Acessa) afirmou que, “quando usada de acordo com as indicações médicas e seguindo as doses recomendadas, [a dipirona] é considerada segura para a maioria das pessoas”.
“As instruções presentes nos rótulos dos MIPs devem ser seguidas com rigor, as doses devem ser respeitadas, evitando-se a automedicação excessiva”, conclui a entidade.
Eficácia e modos de uso
Além das questões envolvendo a segurança, a dipirona foi objeto de uma série de estudos que testaram se ela realmente funciona na prática.
Segundo Marise, que também é fundadora do canal de divulgação científica Nunca Vi 1 Cientista, as evidências sobre a eficácia dela são um pouco mais conclusivas quando comparadas a de outros fármacos comumente usados contra dor e febre.
“Ela tem um efeito bem intenso, a ponto de conseguir competir com os opioides em certos casos ou até mesmo ser usado para aliviar a dor em ambiente hospitalar”, diz ela.
“Mas é claro que não temos tantos estudos para a dipirona como para outras drogas mais modernas, até pela proibição de uso dela nos Estados Unidos e partes da Europa”, complementa.
O Instituto Cochrane, que realiza revisões de publicações científicas para definir o nível de evidência sobre diversos procedimentos, calcula que uma única dose de dipirona é capaz de aliviar a dor moderada ou severa após cirurgias em 7 a cada 10 pacientes.
O número é maior do que o observado com placebo, uma substância sem efeito terapêutico, que resultou em melhoras nos sintomas para 3 em cada 10 indivíduos.
A Cochrane também observa uma eficácia da medicação contra a dor de cólicas renais.
Já para a dor no geral, o efeito da dipirona foi observado em 5 a cada 10 usuários. O índice ficou ligeiramente mais baixo em relação a outras opções farmacêuticas, como combinações de ibuprofeno e paracetamol (70%).
“O uso de uma ou outra opção que atua contra dor e febre, como dipirona, paracetamol, ibuprofeno, entre outros, depende muito de características individuais e costumes familiares”, observa Marise.
Mas é claro que, assim como ocorre com qualquer opção terapêutica, é preciso ler atentamente as informações disponibilizadas pelo fabricante, respeitar o limite de consumo diário e conhecer os possíveis efeitos colaterais.
Segundo a bula da dipirona registrada no Brasil, adultos e adolescentes acima de 15 anos podem tomar de 1 a 2 comprimidos de 500 miligramas até quatro vezes ao dia.
Para esse público, o limite de consumo diário é de 4 gramas (ou 4 mil miligramas)
O remédio não é indicado para crianças com menos de 3 meses de idade ou que têm menos de 5 quilos.
A dipirona em comprimidos não deve ser utilizada por menores de 15 anos — e recomenda-se sempre a supervisão de um médico nesses casos. É possível encontrá-la na forma de xarope, gotas e supositórios, além das versões injetáveis e intravenosas disponíveis em ambiente hospitalar.
Para não ultrapassar os limites de segurança, é importante ler atentamente o rótulo e a bula, pois algumas opções farmacêuticas trazem dipirona na fórmula junto de outros princípios ativos — e um descuido pode fazer alguém exagerar na dose segura sem querer.
O uso da dipirona também deve ser mais cuidadoso em pacientes com problemas nos rins ou no fígado, para evitar crises agudas nestes órgãos vitais.
Exagerar no consumo de dipirona pode provocar enjoo, vômito, dor abdominal, disfunção renal e hepática, tontura, sonolência, coma, convulsões, queda de pressão arterial, arritmias cardíacas e mudança na coloração da urina.
Entre os efeitos colaterais menos graves que a agranulocitose (que é considerada muito rara na população brasileira), algumas pessoas podem sofrer quadros alérgicos ou hipotensão (queda da pressão arterial) após tomarem a dipirona.
Nesses casos, a recomendação é não usar o fármaco — e procurar um profissional da saúde se o incômodo não passar ou piorar.
“É importante reforçar que a dipirona é uma droga segura mas, assim como qualquer medicamento, não é isenta de riscos”, lembra Marini.
“Ela é indicada para tratar quadros agudos de dor e febre, e não deve ser usada de forma contínua, por semanas, meses ou anos, como é comum vermos algumas pessoas fazerem”, conclui a farmacêutica.
Por BBC
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